UM POUCO DO TRABALHO DA CRÍTICA TEXTUAL NOS TEXTOS BÍBLICOS
Introdução
Existe uma matéria bíblica que se encarrega da tarefa de dar
ao leitor e exegeta o texto original da Bíblia. Ela se chama crítica
textual. É uma matéria bíblica muito importante e ao mesmo tempo pouco
conhecida pelo grande público. Essa é a razão pela qual escrevo esse artigo.
Trataremos, neste momento, apenas aspectos teóricos e introdutórios e
mencionaremos exemplos somente com o objetivo de mostrar a problemática, sem
pretender dar soluções.
Hoje, em nossas casas, temos a Bíblia e poucas vezes nos
interrogamos sobre o processo pelo qual passou o texto que lemos. A Bíblia foi
escrita não como um único livro, mas é composta por diversos livros, que
nasceram independentes um do outro e só mais tarde foram unidos e formaram um
único volume. Cada livro tem uma história particular. Além disso, naquele tempo
não existiam as editoras que faziam milhares de cópias idênticas do mesmo
volume. Existia um original e este era copiado manualmente. Da primeira cópia
nasciam outras e dessa forma se multiplicavam e acabaram chegando até nós. Ou
seja, nós recebemos o texto graças às cópias transcritas do original, que hoje
não existe mais.
Provavelmente você já experimentou copiar textos, com a mão
ou digitando. Pode você imaginar quantos erros estamos sujeitos? Transcrevendo
podemos confundir um “o” com um “a”, “e” com “l” ou
até mesmo pular de uma linha diretamente para outra, deixando para trás algum
pedaço do texto. Tudo isso acontecia também com quem copiava os textos
bíblicos. E esses erros cresciam na medida em que as cópias aumentavam. Se o
primeiro que copiou do original cometeu um erro, esse erro foi reproduzido na
cópia seguinte onde provavelmente se acrescentaram outros erros.
Outra coisa que pode acontecer é que quem copia um texto eventualmente não concorda com aquilo que está escrito e resolve fazer uma “correção”. Façamos um exemplo, inventado, para deixar mais claro.
Em João 1 lemos: “O Verbo se fez carne”. Imaginemos que o
copista que transcreveu o texto original pensasse: “Essa frase é muito vaga.
Vamos acrescentar ‘em Belém’”. Neste caso poderíamos ter em nossas bíblias a
seguinte frase: “O Verbo se fez carne em Belém”. Esse texto, contudo, não teria
sido aquele escrito por João, mas se trataria de um acréscimo.
É aqui que entra em campo a crítica textual. Temos certeza
que o texto que temos nas cópias que chegaram até nós é o texto original? A
crítica textual procura desvelar todos os eventuais erros e nos entregar o
texto original, aquele escrito pelo autor inspirado.
Algumas dificuldades com o texto bíblico.
Continuamos com exemplos mais concretos. O texto em hebraico do Antigo Testamento inteiro mais antigo que existe foi transcrito por volta do ano 1000 depois de Cristo (Código de Leningrado). Invés a Vulgata, tradução em latim da Bíblia feita por Jerônimo a partir dum texto hebraico do seu tempo, é do IV século. Quando você encontra uma discordância – e existem diversas – entre o texto em hebraico, do ano 1000, e a Vulgata, escrita 600 anos antes, o que fazer?
Algumas dificuldades com o texto bíblico.
Continuamos com exemplos mais concretos. O texto em hebraico do Antigo Testamento inteiro mais antigo que existe foi transcrito por volta do ano 1000 depois de Cristo (Código de Leningrado). Invés a Vulgata, tradução em latim da Bíblia feita por Jerônimo a partir dum texto hebraico do seu tempo, é do IV século. Quando você encontra uma discordância – e existem diversas – entre o texto em hebraico, do ano 1000, e a Vulgata, escrita 600 anos antes, o que fazer?
Outra dificuldade.
O livro do Sirácida (Eclesiástico) – presente somente nas
bíblias católicas – chegou até nós através de manuscritos em grego. Todavia, em
1896 foi encontrado um manuscrito hebraico deste livro. Se confrontarmos o
Sirácida grego com o Sirácida hebraico a diferença é expressiva. Como
comportar-se? Qual texto terá que tomar como verdadeiro o biblista que decide
fazer uma tradução para o português, que quer publicar uma Bíblia?
Outro exemplo, sem querer provocar polêmica, está na oração
do pai nosso. Uso esse texto por que é bem conhecido e usado muitas vezes nas
nossas orações.
Nas Bíblia católica é normal encontrar o
seguinte texto em Mateus 6:
Eis como deveis rezar: Pai nosso, que estais no céu,
santificado seja o vosso nome; venha a nós o vosso Reino; seja feita a vossa
vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje;
perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos ofenderam;
e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. (Bíblia Ave Maria)
Entre nós evangélicos,lemos:
Portanto, orem assim: "Pai nosso, que estás no céu, que todos reconheçam que o teu nome é santo. Venha o teu Reino. Que a tua vontade seja feita aqui na terra como é feita no céu! Dá-nos hoje o alimento que precisamos. Perdoa as nossas ofensas como também nós perdoamos as pessoas que nos ofenderam. E não deixes que sejamos tentados, mas livra-nos do mal.
[POIS TEU É O REINO, O PODER E A GLÓRIA, PARA SEMPRE.
AMÉM!]" (Bíblia Sagrada – (Nova Tradução na Linguagem de Hoje)
Há algumas frases que são diferentes, por questões de
escolha do tradutor, e não nos interessam. Quero chamar a atenção para o último
versículo da versão da NTLH, que coloquei em letras maiúsculas. Por que esse
texto não aparece na versão católica e de onde ele vem?
Os textos mais antigos da Bíblia – Os textos de
referência.
As testemunhas do texto bíblico podem ser divididas por material (pergaminho, papiro), formato (rótulo ou código), tipo de escritura (até o século X se usava a escritura em maiúsculo, em seguida se usou a letra minúscula), antigüidade (papiros até o século IV), conteúdo (alguns manuscritos trazem somente o Antigo Testamento, outros só os Evangelhos, outros apenas as cartas dos apóstolos...), língua (hebraico e hebraico ou traduções em latim, siríaco, copta, georgiano, armeno, etc.) e outros critérios.
Durante os séculos, os estudiosos da crítica textual
descobriram, reuniram e catalogaram um número enorme de manuscritos bíblicos
dos dois testamentos. Para o Novo Testamento, em 2005, existiam
5.745 manuscritos. Destes 118 são papiros, 317 Maiúsculos, 2877 minúsculos e
2433 lecionários. Esses manuscritos podem ser livros com toto o texto da Bíblia
ou apenas fragmentos de papiros com poucas palavras de um versículo. Apenas
poucos pedaços de textos são próximos ao período em que os textos originais
foram escritos. Um dos textos mais antigos que temos do Novo Testamento é o
papiro P45 (Chester Beatty Library, Irlanda), do fim do segundo século depois
de Cristo, e contém pedaços de textos dos evangelhos.
Em relação ao Antigo Testamento o texto
fundamental para nós hoje é o assim chamado Texto Massorético (TM), que é o
fruto do trabalho de um grupo de escribas, os massoretas, que colocaram os
sinais vocálicos para o texto hebraico. A língua hebraica não tem vogais e como
na idade média não era mais falada, escrupulosos escribas se dedicaram a
definir como deveria exatamente ser pronunciadas certas as palavras sagradas.
Para tanto acrescentaram ao texto original sinais que ajudam na pronúncia das
palavras e ajudam na correta interpretação do texto inspirado. Tais sinais são
chamados “massoras”. Esse trabalho foi realizado entre os séculos VI e X depois
de Cristo.
Na crítica textual é importante estabelecer qual é a relação
entre o Texto Massorético e os textos originais, sobre os quais se basearam os
massoretas para realizar seu trabalho. Tal objetivo se alcança através do
estudo da história do texto do Antigo Testamento. A este propósito, poderíamos
dizer, de forma breve, que existem 4 ramos que mostram formas diferentes deste
texto: um texto que serviu de base para o trabalho dos massoretas, o
“proto-massoretico”; a tradução grega, “Setenta”, realizada no século II antes
de Cristo; os documentos encontrados em Qumran, próximo ao Mar Morto; o
Pentateuco Samaritano, ou seja a Bíblia da comunidade samaritana, que conservou
somente os 5 primeiros livros da Bíblia como escritura inspirada por Deus. De
cada uma destas etapas existem manuscritos que ajudam o crítico textual a
resolver os problemas que o texto põe.
Cada manuscrito encontrado ganhou um código particular. No início se começou nomeando os manuscritos mais antigos, os Maiúsculos, com letras, primeiro do alfabeto árabe e depois do alfabeto grego. Assim o Código Alexandrino recebeu como identificativo a letra “A” e o Sinaítico a letra alfa. Coma as letras não bastavam, foi decidido identificá-los com números, com um zero na frente. Os manuscritos mais recentes, os minúsculos, invés, foram identificados com números, sem o zero na frente. Os papiros são catalogados com a letra “P” seguida por um número. Para os textos antigos de versões em outras línguas usa-se outros códigos. Por exemplo, o “d” indica a Vetus Latina, enquanto que a Vulgata é indicada com “Vg”.
Edições críticas dos manuscritos – Stuttgartensia e Nestle-Aland
Cada manuscrito encontrado ganhou um código particular. No início se começou nomeando os manuscritos mais antigos, os Maiúsculos, com letras, primeiro do alfabeto árabe e depois do alfabeto grego. Assim o Código Alexandrino recebeu como identificativo a letra “A” e o Sinaítico a letra alfa. Coma as letras não bastavam, foi decidido identificá-los com números, com um zero na frente. Os manuscritos mais recentes, os minúsculos, invés, foram identificados com números, sem o zero na frente. Os papiros são catalogados com a letra “P” seguida por um número. Para os textos antigos de versões em outras línguas usa-se outros códigos. Por exemplo, o “d” indica a Vetus Latina, enquanto que a Vulgata é indicada com “Vg”.
Edições críticas dos manuscritos – Stuttgartensia e Nestle-Aland
Quando alguém decide traduzir um trecho bíblico a partir do
original precisa necessariamente entrar nesse mundo. Esses manuscritos estão
espalhados pelo mundo, nos museus e bibliotecas. Obviamente o tradutor não pode
visitar cada museu para ver as variantes e comparar um manuscrito com o outro e
escolher qual texto tomar para a sua tradução. Esse trabalho já foi feito e é
disponível em diversas compilações. Existem duas clássicas, uma para o Antigo e
outra para o Novo Testamento. A Bíblia Hebraica Stuttgartensia é
a obra de referência para as variantes do Antigo Testamento. Invés, para o Novo
Testamento, é o assim chamado Nestle-Aland Novum Testamentum Graece.
As duas edições reúnem todas as variantes de textos existentes. O editor
escolheu um texto base (Codex Lenigradensis (L) para a Biblia Hebraica), mas na
nota de rodapé e nas margens coloca todas as outras opções que existem, usando
os códigos típicos dos manuscritos. Os tradutores das bíblias, invés de
visitarem museus e bibliotecas atrás de manuscritos, usam essas edições a
partir das quais realizam suas traduções.
O método da Crítica Textual
Como descobrir qual é o texto original, aquele escrito pelo
autor inspirado? Para alcançar tal meta, a critíca textual realiza um trabalho
crítico que segue critérios determinados, usando sobretudo uma metodologia
baseada em comparações. As comparações são feitas entre os diferentes
manuscritos que trazem a mesma citação. No processo de comparação existe um
critério elementar e simples, mas ele é fundamental: o texto que explica melhor
a origem das outras variantes tem boas chances de ser considerado o texto
original.
Voltando ao exemplo fictício dado acima, se tivéssemos duas
variações:
A - O Verbo se fez carne
B - O Verbo se fez carne em Belém
Como explicar “em Belém” na variante B e a
ausência dessa indicação geográfica na variante A. Qual explica
melhor a outra? Dificilmente a B consegue explicar a A,
pois por que motivo teria o escriba deixado fora “em Belém”? Normalmente se
acrescenta algo e não se tira. Todavia a variante A pode muito
bem explicar a B. Um copista pode ter ficado insatisfeito com a
frase e ter querido precisar o lugar onde o Verbo se encarnou. Por isso ele
acrescentou “em Belém”. Portanto, neste caso, a variante A seria
original, pois graças a ela se pode explicar por que surgiu a variante B.
Obviamente esse julgamento é auxiliado por outros critérios
científicos. O exegeta precisa, em primeiro lugar, analisar o valor de cada
testemunha, de cada manuscrito. Por exemplo, um texto presente em um manuscrito
do III século tem muito mais valor do que um do X
século.
Feito este passo, é necessário utilizar os critérios
“internos”, ou seja, aquilo que tem a ver com a transcrição do texto, ou seja,
aquilo que é provável que o copista tenha feito quando transcreveu. Nesse
sentido existem diversos erros clássicos que foram cometidos: aplografia (uma
palavra ou sílaba que ocorre duas vezes é escrita uma única), ditografia (uma
palavra ou sílaba que ocorre uma única vez é repetida), parablepsis (quando
uma palavra ou frase é repetida na mesma folha e o olho salta de um lugar para
o outro, deixando para trás um pedaço do texto) e outros erros
inconscientes. Existem ainda os erros deliberados, tais como o
acréscimo, como no caso “em Belém”, a explicação de um texto teologicamente
difícil onde o copista, com palavras suas, tenta elucidar o conteúdo.
Existem 4 regras clássicas para julgar o valor de uma
variante:
1. Lectio difficilior – A variante mais improvável é aquela
que pode ser original;
2. Lectio brevior – A frase mais breve tende a ser a
original;
3. Lectio difformis – Dentro de um mesmo contexto, se uma
frase é diferente e inovador, pode ser a original;
4. Ceterarum originem explicat – O princípio explicado
acima: a variante que consegue explicar a gênesis das outras é a original.
Essa é a estrada pela qual passaram muitas das traduções que
temos em nossas mãos, sem que seja percebida pelo leitor final. Conhecer esse
processo certamente nos ajuda a valorizar o empenho dos tradutores e nos dá
parâmetros para a escolha de uma versão para a nossa leitura pessoal. Além,
obviamente, de permitir que interpretemos o texto de forma coerente com a
intenção do autor.
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