sexta-feira, 21 de junho de 2013

Como os textos bíblicos chegaram até nós? 

Os textos bíblicos do Antigo Testamento começaram a serem escritos por volta do ano mil antes de Cristo. Os judeus sempre mantiveram e ainda mantém até hoje, uma tradição de copiar textos rigorosamente. Quando o Cristianismo surgiu, no século I, os textos bíblicos foram sendo escritos e copiados. Provavelmente, por volta do ano 115 depois de Cristo, os textos do Novo Testamento foram terminados e ao longo dos séculos, foram sendo escritos e copiados. 

Vale destacar que, em tempos medievais, os livros eram extremamente caros, tanto pelo altíssimo custo do material para escrever, como pela ausência de imprensa. Depois do colapso do Império Romano, o papiro que era o único material barato de escrita, embora fosse perecível, desapareceu dos mercados da Europa. Ficou o pergaminho, que era produzido com o couro de ovelhas e cabras. Um rebanho de mais de uma centena de ovelhas tinha que ter seu couro extraído, para se produzir uma só Bíblia. Tanto o conhecimento científico, como a literatura antiga, história, leis, peças teatrais e demais coisas da antiguidade só chegaram até nós pelo imenso esforço de monges medievais, que dedicaram as suas vidas a ficarem copiando livros.

No século IX, o papel que havia sido inventado mais de 500 anos antes na China, passou a ser produzido na Espanha muçulmana. Logo a seguir o papel foi mecanizado e melhorado na Europa católica de então. O papel era muito mais barato que o pergaminho e os livros passaram a serem mais baratos. No entanto, somente com a imprensa de tipos móveis de Gutenberg, no século XV é que a Bíblia passou a ser acessível, à maioria das pessoas.

Com a Bíblia impressa chegamos, aos novos tempos, pois uma impressora pode fazer centenas ou milhares de Bíblias sem erros. Ademais, uma Bíblia impressa não somente é mais barata, como também é melhor que uma Bíblia manuscrita. E ainda por cima ela é uniforme.

Como foi feito o cânon bíblico?    

Ainda no século I, já havia inúmeras formas de Cristianismo. Antes da chegada do ano 100 D.C. já existia Cristianismo na Índia, Egito, Itália, Grécia, Etiópia, Sudão, etc. Por óbvias dificuldades de comunicação, era impossível que tivessem uma única relação de livros inspirados. Os textos que fazem parte do que hoje chamamos de Bíblia, já estavam prontos no ano 100 de nossa era, mas não existia uma Bíblia única cristã. Se alguém procurasse uma Bíblia para comprar na Europa ou qualquer outro lugar do mundo, nos séculos I e II não acharia nenhuma à venda. Uma proposta de cânon do Novo Testamento apareceu no século IV e supostamente datava do século II. Ela não listava como canônicos os livros Apocalipse, II Pedro, II e III João e Judas. O Cânon Muratori não cita a Epístola aos Hebreus como livro canônico. Por outro lado este mesmo Cânon Muratori cita como canônico, o livro O Pastor de Hermas como canônico. O mesmo Cânon Muratori cita o livro da"Sabedoria" como canônico.

Quando o Cristianismo foi legalizado pelo Imperador Constantino no século III, este mandou que as diferentes correntes do Cristianismo fizessem uma escritura de livros comum. Por meio de um Concílio, os bispos decidiram que o Cânon seria de 76 livros. Este Concílio não teve unanimidade. No caso do livro do Apocalipse, por exemplo, os delegados do Bispo de Roma foram contra a sua inclusão no Cânon bíblico. Somente no Concílio de Cartago de 397 é que o livro do Apocalipse foi colocado no Cânon bíblico.

Esta primeira Bíblia cristã foi chamada de Bíblia de São Dâmaso, nome do Papa sob a qual foi escrita. Evidentemente que os cristãos da Índia, Etiópia, etc. em nada, sequer, puderam saber desta primeira Bíblia cristã. Mesmo na Europa, a esmagadora maioria do povo era analfabeto e ignorante. Uma Bíblia no século IV custava muito mais caro que o patrimônio de mais de 98% da população européia de então.

O Cânon ou a relação dos livros bíblicos foi estabelecido por Concílios. Tudo por decisão humana. Nenhum livro bíblico diz quais livros devem ser parte do Cânon. Por outro lado, a história mostra que homens é que decidiram que livros fariam parte do Cânon. Basta lembrar que o livro Macabeus 4 está escrito no Códice Sinaiticus e não faz parte nem da Bíblia Católica e nem da Bíblia Protestante.

Na Europa católica, o Concílio de Florença em 1442 manteve esta mesma bíblia, com 76 livros. O Concílio de Trento, no século seguinte, reduziu a bíblia católica a 73 livros, decisão ainda mantida até hoje, pela Igreja Católica. No Concílio de Jerusalém em 1672, a Igreja Ortodoxa Grega reduziu a sua Bíblia para 70 livros.

No século XVIII, as várias denominações Protestantes concordaram que a Bíblia deveria ter 66 livros. Todas estas decisões quanto ao Cânon bíblico foram tomadas por pessoas, em Concílios. Tudo por decisão humana. Nem preciso dizer que os cristãos etíopes têm, desde o século I, seus próprios escritos sagrados.

Por que alguns livros não foram aceitos entre os oficiais?

Tanto a aceitação, como a rejeição de um dado texto para o Cânon foi influenciada por decisão humana. Isto vem desde que os Concílios existem e acontece até os dias de hoje. No século XIX apareceu o famoso "Livro de Mórmon”, que só foi aceito por um ramo do Protestantismo e foi e ainda é ignorado ou criticado, por todos os demais. Isto vem de longe. O Cânon aceitou por exemplo, a Epístola aos Hebreus, que todos os entendidos sabem há mais de mil anos, não foi escrito por Paulo. Uma forjadura óbvia e de autor desconhecido, mas esta obra de autor desconhecido está em todas as Bíblias. Todos os entendidos sabem que Mateus não escreveu o Evangelho a ele atribuído, pois ele morrera há muito, mas ainda assim, existe o Evangelho segundo Mateus. Todos os entendidos sabem que os quatro Evangelhos são relatos de segunda ou terceira mão. João não escreveu o seu Evangelho.
O livro do Apocalipse teve a feroz oposição dos Papas em Roma, que sempre pressionaram para a sua retirada do Canon. Ele chegou a ser retirado, mas o Concílio de Cartago, em 397, o recolocou de volta ao Cânon. Sim, o livro do Apocalipse foi colocado, depois retirado e depois recolocado na Bíblia.
O livro "Pastor de Hermas" foi considerado por Clemente de Alexandria, Tertuliano, Santo Irineu e Orígenes como inspirado. Os entendidos acham que Hermas é o homem citado por S. Paulo na Epístola aos Romanos, no seu final. Este livro era largamente lido nas igrejas cristãs da Grécia. No século V, o Papa Gelásio coloca tal livro entre os apócrifos. Uma decisão que ainda perdura.

No século XVI, Martinho Lutero exigiu a retirada da "Epístola de São Tiago", do Cânon bíblico. Lutero chamou tal livro de "Carta de palha". Também no século XVI, João Calvino exigiu a retirada do livro do Apocalipse do Cânon bíblico. Ao contrário da decisão do Papa Gelásio, estas exigências tanto de Lutero, como de Calvino deram em nada. A colocação de um texto na Bíblia, de um dado ramo do Cristianismo depende, da tradição e das necessidades terrenas.

Por que as Bíblias Protestantes têm menos livros que as Bíblias Católicas?     O citado Concílio de Florença em 1442 manteve a decisão já do século IV, no Concílio de Cartago, em 397 D.C. de ter uma Bíblia católica com 76 livros. Com a chamada Reforma Protestante, no século XVI, a Igreja Católica através do  Concílio de Trento reduziu a Bíblia católica para 73 livros, decisão ainda em vigor nos dias de hoje.

Nesta redução da Bíblia, a Igreja Católica pelas mãos de seu clero, mostrou que o mundo é quem decide o Cânon. Assim, saiu da Bíblia Católica o livro 2 Esdras, que condena fortemente a reza pelos mortos ou o pedido de coisas vindas dos mortos. Uma clara condenação do culto aos santos e reza pelos mortos no purgatório. Por outro lado, o mesmo Concílio de Trento manteve no Cânon da Bíblia Católica, o livro 2 Macabeus, que claramente fala em rezas e sacrifícios pelos mortos. Não tem o menor sentido a idéia, que o Concílio de Trento tenha colocado livros na Bíblia Católica. Livros como 1 e 2 Macabeus já estavam na Bíblia Católica, muito antes do Concílio de Trento. Há mais de mil Bíblias do século XV hoje em museus e que foram impressas e elas todas tem Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus, por exemplo.

Quanto aos Protestantes, apenas no século XVIII é que eles passaram a ter um relativo entendimento, sobre qual Bíblia afinal defendiam. Eles cortaram a sua Bíblia para 66 livros. No caso do Novo Testamento, eles mantiveram a mesma lista de livros estabelecida no Concílio de Cartago em 397. Os Protestantes ignoraram as sugestões de Lutero e Calvino e simplesmente seguiram o mesmo Cânon, que a Igreja Católica usava desde 397.
Quanto ao Antigo Testamento, as denominações Protestantes decidiram adotar o mesmo Cânon estabelecido pelo Sínodo judaico de Jamnia em 100 D.C. Este Sínodo judaico não teve a presença de nenhum cristão das várias correntes de Cristianismo, que já existiam no ano 100 D.C. Tal sínodo rejeitou como apócrifos todos os livros escritos após o ano 300 A.C. ou que não tivessem sido escritos originalmente em hebraico ou que não tivessem sido fora da Palestina. Na verdade, os judeus até o citado Sínodo de Jamnia usavam uma variedade de textos canônicos.

Nas cavernas de Cunrãm há escritos do livro de Tobias, que é canônico segundo a Bíblia Católica. Nas mesmas cavernas de Cunrãm encontraram-se fragmentos dos livros Enoque e Testamento de Levi, que jamais fizeram parte do Cânon, quer Católico quer Protestante. Não tem sentido se dizer, que os judeus nos tempos de Jesus rejeitavam Macabeus, Judite, Enoque. Isto só aconteceu no citado Sínodo Judaico de Jamnia, que só foi realizado no ano 100 D.C.; quando o Cristianismo não só estava já consolidado, como também já dividido.

A rejeição de 1 Macabeus e Judite também foi influenciada pela política mundana. Ambos os livros citados colocam a rebelião armada, contra um opressor, como sagrada e abençoada por Deus. No século XVIII, as nações Protestantes queriam seus povos dominados quietos. É notório que na luta pela independência americana, os Católicos tiveram uma participação na luta, muito maior que a sua participação na população americana. As sucessivas rebeliões na Irlanda tinham sempre católicos, que diziam seguir o dito nos livros 1 e 2 Macabeus. Tanto uma necessidade de ter uma sanção dos judeus, como necessidades políticas mundanas levaram ao fato das bíblias protestantes, desde a segunda metade do século XVIII ter 66 livros.

Em suma, a primeira Bíblia cristã tinha 76 livros. Isto foi estabelecido por um Concílio. O Concílio de Trento reduziu a bíblia católica para 73 livros, retirando do Cânon livros que condenassem explicitamente orações para os mortos. Ao mesmo tempo o mesmo Concílio manteve 2 Macabeus que apoia rezas pelos mortos. Os Protestantes não tinham uma Bíblia única que seguir. Levou mais de 300 anos, para os Protestantes terem uma Bíblia única. A redução tanto se deveu a fatores políticos, como uma busca de sanção judaica, como a rejeição de orações pelos mortos que são apoiadas por 2 Macabeus. Pouco ou nada houve de busca por verdade em tal redução. Os entendidos sabem que a Epístola aos Hebreus é uma farsa, pois não foi escrita pelo apóstolo Paulo. Ela segue no Cânon Católico e Protestante. No mesmo Novo Testamento foi excluído "Pastor de Hermas", que não foi uma forjadura e foi de fato escrito por Hermas.

No Antigo Testamento, a mesma coisa se repete. Os Protestantes alegam rejeitar 1 Macabeus por ele ser supostamente falso. No entanto 1 Macabeus tem indiscutível base histórica. O evento descrito no livro, a invasão de Israel de fato aconteceu. Judas Macabeus de fato existiu. Nem por ser pelo menos em parte verdade, 1 Macabeus faz parte das Bíblias Protestantes. Por outro lado, nessa mesma Bíblia protestante, há o livro de Gênesis que tem figuras como Adão, Eva, Caim, Abel, Noé; todas tão “verdadeiras” quanto os heróis de ficção científica.

A invasão de Israel descrita em 1 Macabeus de fato aconteceu, mas ela não faz parte das Bíblias Protestantes. O Dilúvio universal e sua arca de Noé com mais de 1.000.000 de espécies de plantas cuidadas apenas pela pequena família de Noé nunca aconteceu, mas mesmo assim, Gênesis está tanto nas Bíblias Protestantes, como nas Bíblias Católicas. Na Bíblia, Jonas, fica por 3 dias vivo dentro de um peixe, mas Judas Macabeus que de fato existiu não aparece nas Bíblias Protestantes.

Aonde há busca pela verdade?

Como já vimos antes, o cânon depende da tradição e das necessidades terrenas. A Igreja Católica manteve 2 Macabeus na Bíblia pois ele mantém a base bíblica para o purgatório e as missas pelos mortos. A mesma Igreja Católica excluiu do cânon o livros 2 Esdras, pois ele condenava rezas pelos mortos. Os Protestantes excluíram 1 Macabeus pois ele supostamente apoiava rebeliões, mas mantiveram as cartas de Paulo com seu apoio à escravidão e submissão de mulheres e fizeram o mesmo com uma farsa, como a Epístola aos Hebreus.


O Cânon tanto Católico, como Protestante é de origem e necessidade humana. Ambos os cânones foram feitos pensando neste mundo. Os Protestantes simplesmente não precisavam de uma Bíblia que tivesse livros apoiando rebeliões, como 1 Macabeus ou apoiando rezas pelos mortos, como 2 Macabeus. Por outro lado, os Católicos não precisavam de livros que condenassem orações pelos mortos, como 2 Esdras. Por isto, a Bíblia Católica saiu de 76 para 73 livros e a Bíblia protestante caiu ainda mais, para 66 livros. Vale ressaltar que o fato da necessidade e da tradição influenciar diretamente na formação cânon, isso não tira do texto a autenticidade de sua inspiração, pois são dois departamentos distintos.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Qual é a origem do dízimo?

A cobrança existe desde a Antiguidade, quando muita coisa podia ser usada como dinheiro

por Marcel Verrumo
O dízimo existe há muito mais tempo que o cristianismo. Templos no antigo Egito, Grécia e Roma, por exemplo, cobravam tributos desde 1500 a.C. Eram doações de qualquer coisa que pudesse ser usada como dinheiro na Antiguidade, como animais, armas, frutas e água. A Igreja Católica institucionalizou a cobrança no Concílio de Macon, em 585, estabelecendo a quantia de 10% das posses dos fiéis. Mas foi Carlos Magno, rei dos francos, que expandiu a prática: conforme alargava seu império no século 9, difundia a cobrança nas regiões conquistadas. Com o tempo, os governos entraram na jogada. "A Igreja permitiu reis a cobrarem o dízimo, mediante o compromisso de expandir a fé cristã", diz Diego Omar Silveira, historiador da UFMG. Com a separação entre Igreja e Estado, a partir do século 18, o dízimo voltou a ser um tributo exclusivamente religioso.
Diz-me por que dizimas
Pagamento inspirou verbo "dizimar"

Roleta romana
O verbo dizimar, que hoje é sinônimo de exterminar, surgiu como uma punição do exército romano em caso de insurreição das tropas. O castigo era sanguinário. E estatístico. Ele consistia em matar um em cada dez soldados, aleatoriamente.

Por que 10%?
Além da mística envolvendo o número, usamos o sistema decimal, então é mais fácil dividir algo por dez do que por sete, por exemplo. Países islâmicos, que também usam o sistema, têm alguns ramos em que o dízimo é de 20%.

Caso de Morte
Na Igreja primitiva, o casal Ananias e Safira foi morto por esconder lucros que deveriam ser doados à comunidade. Não há casos assim só na Bíblia. Em 2010, no Maranhão, uma mulher matou os pais por eles não pagarem o dízimo.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

UM POUCO DO TRABALHO DA CRÍTICA TEXTUAL NOS TEXTOS BÍBLICOS 
A Crítica Textual 


Introdução

Existe uma matéria bíblica que se encarrega da tarefa de dar ao leitor e exegeta o texto original da Bíblia. Ela se chama crítica textual. É uma matéria bíblica muito importante e ao mesmo tempo pouco conhecida pelo grande público. Essa é a razão pela qual escrevo esse artigo. Trataremos, neste momento, apenas aspectos teóricos e introdutórios e mencionaremos exemplos somente com o objetivo de mostrar a problemática, sem pretender dar soluções. 

Hoje, em nossas casas, temos a Bíblia e poucas vezes nos interrogamos sobre o processo pelo qual passou o texto que lemos. A Bíblia foi escrita não como um único livro, mas é composta por diversos livros, que nasceram independentes um do outro e só mais tarde foram unidos e formaram um único volume. Cada livro tem uma história particular. Além disso, naquele tempo não existiam as editoras que faziam milhares de cópias idênticas do mesmo volume. Existia um original e este era copiado manualmente. Da primeira cópia nasciam outras e dessa forma se multiplicavam e acabaram chegando até nós. Ou seja, nós recebemos o texto graças às cópias transcritas do original, que hoje não existe mais.

Provavelmente você já experimentou copiar textos, com a mão ou digitando. Pode você imaginar quantos erros estamos sujeitos? Transcrevendo podemos confundir um “o” com um “a”“e” com “l” ou até mesmo pular de uma linha diretamente para outra, deixando para trás algum pedaço do texto. Tudo isso acontecia também com quem copiava os textos bíblicos. E esses erros cresciam na medida em que as cópias aumentavam. Se o primeiro que copiou do original cometeu um erro, esse erro foi reproduzido na cópia seguinte onde provavelmente se acrescentaram outros erros.

Outra coisa que pode acontecer é que quem copia um texto eventualmente não concorda com aquilo que está escrito e resolve fazer uma “correção”. Façamos um exemplo, inventado, para deixar mais claro.

Em João 1 lemos: “O Verbo se fez carne”. Imaginemos que o copista que transcreveu o texto original pensasse: “Essa frase é muito vaga. Vamos acrescentar ‘em Belém’”. Neste caso poderíamos ter em nossas bíblias a seguinte frase: “O Verbo se fez carne em Belém”. Esse texto, contudo, não teria sido aquele escrito por João, mas se trataria de um acréscimo.

É aqui que entra em campo a crítica textual. Temos certeza que o texto que temos nas cópias que chegaram até nós é o texto original? A crítica textual procura desvelar todos os eventuais erros e nos entregar o texto original, aquele escrito pelo autor inspirado.

Algumas dificuldades com o texto bíblico.

Continuamos com exemplos mais concretos. O texto em hebraico do Antigo Testamento inteiro mais antigo que existe foi transcrito por volta do ano 1000 depois de Cristo (Código de Leningrado). Invés a Vulgata, tradução em latim da Bíblia feita por Jerônimo a partir dum texto hebraico do seu tempo, é do IV século. Quando você encontra uma discordância – e existem diversas – entre o texto em hebraico, do ano 1000, e a Vulgata, escrita 600 anos antes, o que fazer?

Outra dificuldade.

O livro do Sirácida (Eclesiástico) – presente somente nas bíblias católicas – chegou até nós através de manuscritos em grego. Todavia, em 1896 foi encontrado um manuscrito hebraico deste livro. Se confrontarmos o Sirácida grego com o Sirácida hebraico a diferença é expressiva. Como comportar-se? Qual texto terá que tomar como verdadeiro o biblista que decide fazer uma tradução para o português, que quer publicar uma Bíblia?

Outro exemplo, sem querer provocar polêmica, está na oração do pai nosso. Uso esse texto por que é bem conhecido e usado muitas vezes nas nossas orações.

Nas Bíblia católica é normal encontrar o seguinte texto em Mateus 6:
Eis como deveis rezar: Pai nosso, que estais no céu, santificado seja o vosso nome; venha a nós o vosso Reino; seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje; perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos ofenderam; e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. (Bíblia Ave Maria)

Entre nós evangélicos,lemos:

Portanto, orem assim: "Pai nosso, que estás no céu, que todos reconheçam que o teu nome é santo. Venha o teu Reino. Que a tua vontade seja feita aqui na terra como é feita no céu! Dá-nos hoje o alimento que precisamos. Perdoa as nossas ofensas como também nós perdoamos as pessoas que nos ofenderam. E não deixes que sejamos tentados, mas livra-nos do mal.

[POIS TEU É O REINO, O PODER E A GLÓRIA, PARA SEMPRE. AMÉM!]" (Bíblia Sagrada – (Nova Tradução na Linguagem de Hoje)

Há algumas frases que são diferentes, por questões de escolha do tradutor, e não nos interessam. Quero chamar a atenção para o último versículo da versão da NTLH, que coloquei em letras maiúsculas. Por que esse texto não aparece na versão católica e de onde ele vem?

Os textos mais antigos da Bíblia – Os textos de referência.

As testemunhas do texto bíblico podem ser divididas por material (pergaminho, papiro), formato (rótulo ou código), tipo de escritura (até o século X se usava a escritura em maiúsculo, em seguida se usou a letra minúscula), antigüidade (papiros até o século IV), conteúdo (alguns manuscritos trazem somente o Antigo Testamento, outros só os Evangelhos, outros apenas as cartas dos apóstolos...), língua (hebraico e hebraico ou traduções em latim, siríaco, copta, georgiano, armeno, etc.) e outros critérios.

Durante os séculos, os estudiosos da crítica textual descobriram, reuniram e catalogaram um número enorme de manuscritos bíblicos dos dois testamentos. Para o Novo Testamento, em 2005, existiam 5.745 manuscritos. Destes 118 são papiros, 317 Maiúsculos, 2877 minúsculos e 2433 lecionários. Esses manuscritos podem ser livros com toto o texto da Bíblia ou apenas fragmentos de papiros com poucas palavras de um versículo. Apenas poucos pedaços de textos são próximos ao período em que os textos originais foram escritos. Um dos textos mais antigos que temos do Novo Testamento é o papiro P45 (Chester Beatty Library, Irlanda), do fim do segundo século depois de Cristo, e contém pedaços de textos dos evangelhos.

Em relação ao Antigo Testamento o texto fundamental para nós hoje é o assim chamado Texto Massorético (TM), que é o fruto do trabalho de um grupo de escribas, os massoretas, que colocaram os sinais vocálicos para o texto hebraico. A língua hebraica não tem vogais e como na idade média não era mais falada, escrupulosos escribas se dedicaram a definir como deveria exatamente ser pronunciadas certas as palavras sagradas. Para tanto acrescentaram ao texto original sinais que ajudam na pronúncia das palavras e ajudam na correta interpretação do texto inspirado. Tais sinais são chamados “massoras”. Esse trabalho foi realizado entre os séculos VI e X depois de Cristo.

Na crítica textual é importante estabelecer qual é a relação entre o Texto Massorético e os textos originais, sobre os quais se basearam os massoretas para realizar seu trabalho. Tal objetivo se alcança através do estudo da história do texto do Antigo Testamento. A este propósito, poderíamos dizer, de forma breve, que existem 4 ramos que mostram formas diferentes deste texto: um texto que serviu de base para o trabalho dos massoretas, o “proto-massoretico”; a tradução grega, “Setenta”, realizada no século II antes de Cristo; os documentos encontrados em Qumran, próximo ao Mar Morto; o Pentateuco Samaritano, ou seja a Bíblia da comunidade samaritana, que conservou somente os 5 primeiros livros da Bíblia como escritura inspirada por Deus. De cada uma destas etapas existem manuscritos que ajudam o crítico textual a resolver os problemas que o texto põe.

Cada manuscrito encontrado ganhou um código particular. No início se começou nomeando os manuscritos mais antigos, os Maiúsculos, com letras, primeiro do alfabeto árabe e depois do alfabeto grego. Assim o Código Alexandrino recebeu como identificativo a letra “A” e o Sinaítico a letra alfa. Coma as letras não bastavam, foi decidido identificá-los com números, com um zero na frente. Os manuscritos mais recentes, os minúsculos, invés, foram identificados com números, sem o zero na frente. Os papiros são catalogados com a letra “P” seguida por um número. Para os textos antigos de versões em outras línguas usa-se outros códigos. Por exemplo, o “d” indica a Vetus Latina, enquanto que a Vulgata é indicada com “Vg”.

Edições críticas dos manuscritos – Stuttgartensia e Nestle-Aland

Quando alguém decide traduzir um trecho bíblico a partir do original precisa necessariamente entrar nesse mundo. Esses manuscritos estão espalhados pelo mundo, nos museus e bibliotecas. Obviamente o tradutor não pode visitar cada museu para ver as variantes e comparar um manuscrito com o outro e escolher qual texto tomar para a sua tradução. Esse trabalho já foi feito e é disponível em diversas compilações. Existem duas clássicas, uma para o Antigo e outra para o Novo Testamento. A Bíblia Hebraica Stuttgartensia é a obra de referência para as variantes do Antigo Testamento. Invés, para o Novo Testamento, é o assim chamado Nestle-Aland Novum Testamentum Graece. As duas edições reúnem todas as variantes de textos existentes. O editor escolheu um texto base (Codex Lenigradensis (L) para a Biblia Hebraica), mas na nota de rodapé e nas margens coloca todas as outras opções que existem, usando os códigos típicos dos manuscritos. Os tradutores das bíblias, invés de visitarem museus e bibliotecas atrás de manuscritos, usam essas edições a partir das quais realizam suas traduções.

O método da Crítica Textual

Como descobrir qual é o texto original, aquele escrito pelo autor inspirado? Para alcançar tal meta, a critíca textual realiza um trabalho crítico que segue critérios determinados, usando sobretudo uma metodologia baseada em comparações. As comparações são feitas entre os diferentes manuscritos que trazem a mesma citação. No processo de comparação existe um critério elementar e simples, mas ele é fundamental: o texto que explica melhor a origem das outras variantes tem boas chances de ser considerado o texto original.

Voltando ao exemplo fictício dado acima, se tivéssemos duas variações:

A - O Verbo se fez carne

B - O Verbo se fez carne em Belém

Como explicar “em Belém” na variante B e a ausência dessa indicação geográfica na variante A. Qual explica melhor a outra? Dificilmente a B consegue explicar a A, pois por que motivo teria o escriba deixado fora “em Belém”? Normalmente se acrescenta algo e não se tira. Todavia a variante A pode muito bem explicar a B. Um copista pode ter ficado insatisfeito com a frase e ter querido precisar o lugar onde o Verbo se encarnou. Por isso ele acrescentou “em Belém”. Portanto, neste caso, a variante A seria original, pois graças a ela se pode explicar por que surgiu a variante B.

Obviamente esse julgamento é auxiliado por outros critérios científicos. O exegeta precisa, em primeiro lugar, analisar o valor de cada testemunha, de cada manuscrito. Por exemplo, um texto presente em um manuscrito do III século tem muito mais valor do que um do X século.
Feito este passo, é necessário utilizar os critérios “internos”, ou seja, aquilo que tem a ver com a transcrição do texto, ou seja, aquilo que é provável que o copista tenha feito quando transcreveu. Nesse sentido existem diversos erros clássicos que foram cometidos: aplografia (uma palavra ou sílaba que ocorre duas vezes é escrita uma única), ditografia (uma palavra ou sílaba que ocorre uma única vez é repetida), parablepsis (quando uma palavra ou frase é repetida na mesma folha e o olho salta de um lugar para o outro, deixando para trás um pedaço do texto) e outros erros inconscientes. Existem ainda os erros deliberados, tais como o acréscimo, como no caso “em Belém”, a explicação de um texto teologicamente difícil onde o copista, com palavras suas, tenta elucidar o conteúdo.

Existem 4 regras clássicas para julgar o valor de uma variante:
1. Lectio difficilior – A variante mais improvável é aquela que pode ser original;
2. Lectio brevior – A frase mais breve tende a ser a original;
3. Lectio difformis – Dentro de um mesmo contexto, se uma frase é diferente e inovador, pode ser a original;
4. Ceterarum originem explicat – O princípio explicado acima: a variante que consegue explicar a gênesis das outras é a original.


Essa é a estrada pela qual passaram muitas das traduções que temos em nossas mãos, sem que seja percebida pelo leitor final. Conhecer esse processo certamente nos ajuda a valorizar o empenho dos tradutores e nos dá parâmetros para a escolha de uma versão para a nossa leitura pessoal. Além, obviamente, de permitir que interpretemos o texto de forma coerente com a intenção do autor.